sábado, 12 de outubro de 2013

Dona Cila

1) A artista: Maria Gadú

     “Essa menina nasceu com a bunda virada para Lua!” dizia minha avó. Essa expressão antiga e bem humorada dá o tom do quanto uma pessoa é sortuda e abençoada pelo Universo – situação que comporta bem a divina Maria Gadú. Imaginar seu semblante é ter a certeza do encontro de um brilho imenso no seu olhar que apresenta um quê da doçura do universo infantil!
     Sua voz ecoa pelo Brasil (e mundo!) há 4 anos quando gravou seu primeiro cd com canções próprias, e desde então, sua legião de admiradores só aumenta -  inclusive com o reconhecimento de dois nomes da MPB. O mito Milton Nascimento gravou comercial com ela para homenageá-la: “Eu sou muito fã dela e só tenho a agradecer por ela ter me convidado – ela prova que é realmente amiga!”
       Já o ícone Caetano Veloso chegou a gravar um DVD com ela – registro histórico de duas gerações – e a fazer uma turnê que passou por 6 cidades brasileiras. “Fizemos uma ‘excursão’. A Maria tem uma musicalidade autêntica e também tem uma afirmação da personalidade muito espontânea.”
     É, “Maria, Maria” não está neste mundo a passeio. É gente que chega para iluminar, o timbre da sua voz tem o dom de me fazer flutuar na posição da flor de lótus!

2) A composição

       “Dona Cila” é uma grande homenagem para sua avó que morreu há alguns anos. “Na vida, sempre fui eu, minha mãe e minha avó. Fui criada com ela, que me ensinou tudo, desde música até como me relacionar com as pessoas.” A avó também teve seu papel na paixão de Maria pela música: apesar de ser cantora lírica - Cila perdeu a voz ao usar um produto químico em uma limpeza, trabalhando como empregada doméstica -, ela, filha e neta, que moraram juntas durante 13 anos, sempre ouviram de tudo, o que hoje faz com que Maria diga que suas influências vão de "Chico [Buarque] a Backstreet Boys".
     "Minha avó entrou num processo de morte durante um ano. Descobriu um câncer, desenvolveu a metástase e foi definhando. E eu definhei junto. Virei um vegetal, tinha uns dez quilos a menos", ela diz, relembrando a avó, sua "deusa de ébano, a melhor alma do mundo". "É impossível [falar dela sem sofrer]. Mas aquela dor de apego não tenho mais. Dá saudade, às vezes choro, porque a pessoa não existe mais neste lugar físico. Claro que a gente bate altos papos, eu converso com ela horrores, faço piada."
          Pouco tempo antes de a avó morrer, ela compôs "Dona Cila" em sua homenagem, uma das oito faixas autorais de seu primeiro disco, homônimo, lançado em 2009. Maria, que pela primeira vez havia pensado em desistir de compor e cantar, ligou para a mãe dizendo que tinha, enfim, entendido que a avó "tinha que ir embora" - e cantou, ao telefone, os versos da canção.
        O clipe da música é belíssimo e conta com a interpretação da atriz Neusa Borges no papel de Dona Cila. Segundo Maria Gadú, o roteiro retrata dois grandes sonhos da avó: se apresentar em um teatro municipal e desfilar como baiana na Marquês de Sapucaí. Vale a pena conferir! 

3) A letra

De todo o amor que eu tenho
Metade foi tu que me deu
Salvando minh'alma da vida
Sorrindo e fazendo o meu eu
Se queres partir ir embora
Me olha da onde estiver
Que eu vou te mostrar que eu to pronta
Me colha madura do pé
Salve, salve essa nega
Que axé ela tem
Te carrego no colo e te dou minha mão
Minha vida depende só do teu encanto
Cila pode ir tranquila
Teu rebanho tá pronto
Teu olho que brilha e não para
Tuas mãos de fazer tudo e até
A vida que chamo de minha
Neguinha, te encontro na fé
Me mostre um caminho agora
Um jeito de estar sem você
O apego não quer ir embora
Diaxo, ele tem que querer
Ó meu pai do céu, limpe tudo aí
Vai chegar a rainha
Precisando dormir
Quando ela chegar
Tu me faça um favor
Dê um manto a ela, que ela me benze aonde eu for
O fardo pesado que levas
Deságua na força que tens
Teu lar é no reino divino
Limpinho cheirando alecrim

4) Minha história com a música

       Lembro a primeira vez em que parei para conferir os bastidores da composição de “Dona Cila” – Os versos que retratam a relação de Gadú com sua avó me deram fôlego para mergulhar no mar da história que tenho com minha avó materna!
       Quando nasci, minha mãe estava no meio do ritmo de aulas do seu curso de Pedagogia na faculdade. Logo, minha avó assumiu o comando da situação, renunciando uma série de compromissos para zelar pelos meus primeiros meses neste mundo. Hoje sinto que a força que tenho para conduzir o cotidiano possui uma ligação profunda com a troca de olhares com a minha avó.
        O trecho “ De todo o amor que eu tenho metade foi tu que me deu” define bem a minha relação com a ‘Curuquinha’. Essa mulher foi a pessoa que mais devotou amor à minha essência nesta vida. Eu via o sentimento mais sublime desabrochar em lágrimas no seu olhar nos momentos de despedidas.
        Recordo bem o seu prazer em cozinhar para mim. Minha receita predileta? Orelha de pau, coisa típica do interior. Guloseima que só avó tem “licença” para fazer. Tenho saudade do ritual da minha chegada de viagem no sertão: a ida à sua casa. O lar sempre enfeitado com um novo detalhe, a cozinha apertada, o café preto, o sorriso de canto a canto com a minha presença, a vontade de querer me agradar. Não havia necessidade de banquete, o alimento maior era a comunhão de olhares.  
       Dona Socorro era uma mulher de personalidade forte. Sem papas na língua, fazia questão de dizer que eu era o preferido entre os 23 netos que a vida lhe deu. O resultado? Thiago constrangido com a situação sendo alvo da incompreensão e de “raivas” momentâneas dos primos que não entendiam a razão de tanto afeto. Hoje nós rimos de todas as cenas passadas dignas de um filme a la “Vovózona” ou “Minha Mãe é uma peça”!
    Essa semana me questionaram: “Qual a realização da qual você mais se orgulha?” Rapidamente pensei na homenagem que fiz para ela na ocasião do seu aniversário de 70 anos: uma espécie de “Arquivo confidencial” com registros de todos filhos e netos. Vi minha avó ciente da própria história construída, as lágrimas em seu rosto expressaram a sensação de missão cumprida.
        Em 2010 fomos pegos de surpresa com a partida de ‘Curuquinha’. A antecipação da sua ida deixou sua prole órfã de olhar materno. Confesso que me surpreendi comigo mesmo: convivi bem com o luto, encarei como uma passagem que faz parte de um rumo lindo que foi projetado no momento certo. Vi sentido. Fez sentido. Para alguns da família, foi preciso perder para amadurecer. No fim das contas, as peças do quebra-cabeça se encontram para formar uma visão incrível. Carrego comigo a doce certeza neste dia 12 de outubro, data do seu aniversário, que ela está assim como Dona Cila “no reino divino limpinho cheirando alecrim!”

Confira o clipe da música!



FONTES DE PESQUISA:





Lançamento do clipe "Dona Cila" no Fantástico

Milton fala sobre Gadú







6 comentários:

  1. Excelente e o texto e sua visão bem detalhada sobre essa belíssima música. Conheciva verdadeira mensagem dessa música, quando perdi minha avó há um ano atrás. Gostei muito! Não conhecia alguns fatos que envolviam essa letra.

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  2. Que Linda história Thiago.
    Minha avó foi velada ontem, momento de muita tristeza. Mas seu texto fez brotar um sorriso de cumplicidade em um rosto onde só cabiam lagrimas.
    Obrigada.

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  3. Chorei de emoção com o clipe e com seu texto. Sua vó te olha e te cuida de onde estiver. Fique com os Deuses. Namastê.

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  4. Chorei de emoção com o clipe e com seu texto. Sua vó te olha e te cuida de onde estiver. Fique com os Deuses. Namastê.

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  5. Estou em prantos. Sempre que ouço a música completa, ou esta parte:De todo o amor que eu tenho metade foi tu que me deu...
    Desperta de dentro de mim, uma nostalgia de pessoas de momentos e de como eu fui muito feliz e ainda sou. Minha vó, graças a Deus, não se foi, e em todas as minhas orações eu pesso a Deus que dê mais vida e saúde a minha guerreira em pleno aos 98 anos.

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